terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Como Viver num Mundo Mau


Todos os Heróis da fé viveram no mesmo mundo em que eu e vocês vivemos; o mundo foi sempre o mesmo. E no registro a respeito deles lê-se como se segue: "Os quais pela fé venceram reinos, praticaram a justiça, alcançaram promessas, fecharam as bocas dos leões, apagaram a força do fogo, escaparam do fio da espada, da fraqueza tiraram forças, na batalha se esforçaram, puseram em fugida os exércitos dos estranhos. As mulheres receberam pela ressurreição os seus mortos; uns foram torturados, não aceitando o seu livramento para alcançarem melhor ressurreição; e outros experimentaram escárnios e açoites, e até cadeias e prisões. Foram apedrejados, serrados, tentados, mortos ao fio da espada; andaram vestidos de peles de ovelhas e de cabras, desamparados, aflitos e maltratados (dos quais o mundo não era digno), errantes pelos desertos e montes, e pelas covas e cavernas da terra".

Esse era o tipo de mundo no qual eles viveram. O nosso mundo não é pior; todavia é igualmente mau. Eles viveram num dia mau, e nós vivemos num dia mau. Mas aqueles homens triunfaram. Foram figuras heróicas, foram capazes de permanecer firmes, de resistir. Tendo feito tudo, permaneceram inabaláveis, ficaram fumes como homens, e até hoje se destacam na história como gigantes.

O segredo deles é que eles fizeram precisamente as coisas que os cristãos hebreus não estavam fazendo. Aqueles homens eram fortes "no Senhor e na força do seu poder"; eles "exercitavam os seus sentidos" para poderem entender a verdade de Deus; eram homens que sabiam diferenciar entre o bem e o mal. Vejam um homem como Moisés. Criado como filho da filha de Faraó, podia ter sido o herdeiro do trono. Entretanto ele pôs isso de lado, e o fez porque tinha os olhos postos "na recompen¬sa". Esse é o segredo de todos aqueles homens; e eu e vocês devemos observá-los e pensar bem no seu exemplo.

E desta maneira que aqueles homens do passado realmente nos ajudam. Vemo-los fazerem exatamente o que somos chamados a fazer. Eles correram a carreira, e triunfaram. Eles se edificaram a si mesmos na sua santíssima fé. Eles ficaram firmes contra as astúcias do diabo, apesar de todo o sofrimento por que passaram. Que homens magníficos! A história deles foi escrita para ajudar-nos e fortalecer-nos. Você não se sente melhor sempre que lê sobre eles? E um tônico excelente. Quando você achar que a luta está sendo demais para você, que tudo está contra você, e quando você se queixar de tudo o que lhe está acontecendo, leia o capítulo onze da Epístola aos Hebreus. Se no fim você não se envergonhar de si mesmo, você é um pobre cristão. E pobre cristão você será, se não se levantar e não disser: "Sim, eles fizeram aquilo no poder de Deus, e eu vou fazer o mesmo. Se Deus os capacitou, Ele me capacitará". Esse é o constante argumento das Escrituras. Tiago cita o caso de Elias. Diz ele: "Elias era homem sujeito às mesmas paixões que nós" (5:17). Não havia nada de peculiar em Elias que explicasse as coisas que ele fez; foi Deus que o capacitou. Muito bem, façam como ele, diz Tiago. E assim foi com todos eles. O livro de Jó é, todo ele, um grande tratado sobre este assunto. Considerem a paciência de Jó, e como Deus o tratou no fim, e o abençoou.

Ler a respeito desses homens ajuda-nos a fortalecer-nos e nos anima a prosseguir com os nossos exercícios. Se procedermos assim, viremos a ser como eles. Sigam-nos, sigam essa caravana de heróis; são homens como esses que devemos imitar e que devemos tomar por modelo.

E assim passamos ao nosso derradeiro princípio: "Portanto nós também, pois que estamos rodeados de uma tão grande nuvem de testemunhas, deixemos todo embaraço, e o pecado que tão de perto nos rodeia, e corramos com paciência a carreira que nos está proposta, olhando para Jesus, autor e consumador da fé, o qual pelo gozo que lhe estava proposto suportou a cruz, desprezando a afronta, e assentou-se à destra do trono de Deus. Considerai pois aquele que suportou tais contradições dos pecadores contra si mesmo, para que não enfraqueçais, desfalecendo em vossos ânimos. Ainda não resististes até ao sangue, combatendo contra o pecado". O Filho de Deus é a mensagem funda¬mental. "Olhando para Jesus", que veio deliberadamente a este mundo mal, a este mundo de guerras, pecado, vergonha e indignidade. Ele não pertencia a este mundo. Veio a ele deliberadamente; Ele sofreu e suportou a contradição dos pecadores contra Si. Ele "resistiu até ao sangue". E isso tudo "pelo gozo que lhe estava proposto". Ele tinha conhecimento do lugar para onde ia e da glória vindoura. Por isso "suportou a cruz, desprezando a afronta".

E desse modo que se faz exercício, é desse modo que se "corre a carreira" que nos é proposta. É desse modo que você se edifica em sua santíssima fé! Esta é a única mensagem para os homens e para as mulheres num mundo como o de hoje. Não podemos mudar as circuns¬tâncias, mas podemos triunfar nelas. Podemos ser: "mais do que vencedores"; e nos tornamos tais quando nos achamos "olhando para JESUS". Olhem para Ele! Olhem as noites que Ele passou em oração, olhem o Seu conhecimento da Palavra de Deus, olhem o modo como Ele "exercitava os Seus sentidos". E todos os que O seguem têm feito o mesmo; todos eles são Seus imitadores.

Devemos tornar-nos Seus imitadores. Devemos olhar para além dos homens, devemos olhar para o Filho de Deus e para o que Ele fez para "livrar-nos do presente século mau" (Gálatas 1:4), e introduzir-nos na glória que nos espera com Deus.

Cristãos, o inundo está olhando para vocês, esperando de vocês ensino, instrução, um exemplo de como viver vitoriosamente. Exercitem, pois, os seus sentidos, agarrem-se a estas coisas, olhem para os grandes heróis da fé, buscando deles inspiração. Acima de tudo, olhem para Jesus, "o autor e consumador da fé", e assim vocês se fortalecerão "no Senhor e na força do seu poder", e serão capazes de resistir no dia mau quando este chegar. Há somente um meio pelo qual podemos "ficar firmes" num tempo como esse, e é conhecer esta verdade, fortalecer-nos nela e, havendo feito tudo, "ficar firmes".

D. M. Lloyd-Jones

Por que o Caminho é Estreito?


"estreita é aporta e apertado o caminho que leva à vida, e poucos há que a encontrem. " (Mat. 7:14).

Questão 1. Mas por que Deus fez o caminho para o céu tão difícil? Por que tanto trabalho?

Resposta 1. Para ensinar-nos a valorizar as coisas celestiais. Se a salvação viesse facilmente, não lhe daríamos o devido valor. Se os diamantes fossem comuns teriam pouca importância, entretanto, visto que são tão difíceis de serem conseguidos, são tão valorizados. Tertuliano conta que quando as pérolas eram comuns em Roma, as pessoas as usavam em seus sapatos, cujo próximo passo era esmagá-las sob seus pés. A salvação é uma pérola que Deus não permite ser desconsiderada. Portanto, deverá ser conseguida com trabalho santo. Deus não permitirá que baixem os preços das misericórdias espiritu ais. Aqueles que têm esta preciosa flor da salvação devem colhê-la com o suor de seus rostos.

Devemos trabalhar e nos esmerar para podermos estar qualificados para o céu. Um pai deixará sua herança ao filho, todavia primeiro ele lhe dará uma educação para que possa estar qualificado para ela. Deus nos dá a salvação, contudo primeiro Ele "nos fez idôneos para participar da herança dos santos na luz. " (Col. 1:12). Enquanto estamos trabalhando, estamos correndo e nos adequando para o céu. O pecado está sendo enfraquecido, a graça está sendo amadurecida. Enquanto estamos em combate, estamos nos preparando par a a coroa. Primeiro se amadurece o odre antes de colocar o vinho. Deus irá nos amadurecer com a graça antes de derramar o vinho da glória.

Questão 2. Mas se deve haver este trabalho, como se diz que o jugo de Cristo é suave?

Resposta 2. Para a parte carnal é difícil, porém onde há a infusão de um novo e santo princípio, o jugo de Cristo é suave. Não é um jugo, e sim uma coroa. Quando as rodas da alma são lubrificadas com graça, então um cristão se move no caminho da religião com facilidade e alegria. Uma criança se alegra em obedecer a seu pai. Para Paulo servir ao Senhor era o céu: "... segundo o homem interior tenho prazer na lei de Deus. " (Rom. 7:22). E quão rapidamente a alma é levada por essas asas! O serviço de Cristo é a liberdade de Cristo, portanto o apóstolo chama isso de "lei da liberdade " (Tg. 1:25).

Servir a Deus, amar a Deus, ter prazer em Deus, é a mais doce liberdade do mundo. Cristo não faz como fez Faraó: "... faziam servir os filhos de Israel com dureza " (Ex. 1:13), mas Ele põe sobre eles os constrangimentos do amor: " ...o amor de Cristo nos constrange... "(II Cor. 5:14). Seus preceitos não são cargas, são privilégios; não são obstáculos, são ornamentos. Portanto, Seu jugo é leve, mas para o homem não regenerado este fardo tem um peso que o atormenta e aborrece. Quando a corrupção prevalece, ainda o melhor coração encontra alguma relutância. É isso que precisa ser levado em conta quanto à primeira razão que citamos, a dificuldade do trabalho. A segunda razão porque precisamos de muito suor santo e esforço no desenvolvimento da salvação é devido à excelência desse traba lho. Pouco serão salvos, portanto devemos trabalhar o máximo que puder mos para estarmos entre esses poucos. O caminho para o inferno ó largo, ele está repleto de riquezas e prazeres. Ele tem uma rua de ouro, por isso há muitos que viajam por ele; no entanto, o caminho para o céu não lhes é atraente. Não é uma trilha batida, e poucos podem achá-la.

Os anunciadores da graça universal dizem que Cristo morreu intencionalmente por todos, mas então por que nem todos são salvos? As intenções de Cristo poderiam ser frustradas? Alguns afirmam tão grosseiramente que todos serão realmente salvos, porém não foi o que disse o Senhor Jesus: "estreita é aporta e apertado o caminho que leva à vida, e poucos há que a encontrem. " (Mat. 7:14). Ora, como todos podem entrar por essa porta e poucos a encontrarem, para mim parece um paradoxo! A manada dos homens vai para o matadouro, "mas o remanescente será salvo. " (Rom. 9:27). A peça inteira é cortada e vai para o diabo. Somente um remanescente será salvo. A maioria das pessoas no mundo é fruto caído da árvore, derrubado pelo vento. Aquela oliveira em Is. 17:6 com duas ou três azeitonas na mais alta ponta dos ramos, é um símbolo apropriado do reduzido número daqueles que serão salvos. Satanás vai embora com a colheita, Deus tem somente alguns rabiscos. Nesta grande cidade se fizéssemos uma votação ou uma pesquisa de opinião, o diabo certamente venceria.

Baseado no que aprendemos, observe que se fôssemos dividir o mundo em trinta partes iguais, dezenove destas trinta estão cobertas de idolatria barbaresca, seis dos onze restantes com a doutrina de Maomé, de modo que restaria apenas cinco partes das trinta onde há um pouco de cristianismo. Entre estes "cristãos" há muitos seduzidos pelos papistas por um lado e protestantes formais por outro, de forma que há poucos que são salvos. Assim sendo, isso deve levar-nos a um esforço cada vez maior para fazermos parte do pequeno número daqueles que herdarão a salvação.

A terceira razão porque devemos pôr tanto vigor neste trabalho é devido a possibilidade do mesmo. A impossibilidade mata todo o esforço. Quem irá sofrer por algo que não tenha a esperança de conseguir? Mas "... no tocante a isto ainda há esperança para Israel. " (Esd. 10:2). A salvação é algo viável, ela pode ser conseguida. Ó amigos, embora a porta do paraíso seja estreita ela ainda está aberta. Está fechada para os demônios, aberta porém para vocês. Quem não se esforçaria por entrar por ela? É uma questão de livrar-se de seus pecados, remover esta fina camada de barro que os mascara, desinflar seu orgulho e assim talvez vocês possam entrar pela porta estreita. Esta possibilidade da salvação, aliás probabilidade, deve fazer com que vocês empenhem sua vida neste esforço. Se há alimento, por que continuarem por mais tempo morrendo de fome em seus pecados?

Thomas Watson (1620-1686)

Deus não tem pressa


Deus não tem pressa. Aliás, desconfio que ele não tenha relógio. Mas, ao contrário do que possa parecer, a frase "deus tarda, mas não falha" também não lhe diz respeito.

Acompanhe o que talvez seja a segunda proposta de trabalho de Deus ao homem. É bom lembrar que a primeira — feita a Noé —, da ideia à realização, levou não menos do que cem anos. Agora, trata-se de um projeto novo. Uma espécie de PAC (Plano Ancestral de Crescimento) da humanidade: "Quando Abrão estava com noventa e nove anos de idade o Senhor lhe apareceu e disse: ‘Eu sou o Deus todo-poderoso; ande segundo a minha vontade e seja íntegro. Estabelecerei a minha aliança entre mim e você e multiplicarei muitíssimo a sua descendência’" (Gn 17.1-2).

O leitor sabe do que Deus está falando. E não é a primeira vez que o Todo-Poderoso toca no assunto. Cinquenta anos antes, Deus havia sugerido uma mudança radical na vida do velho e manso Abraão. E, até agora, nada. Mas Deus repete as suas intenções.

Aqui, volto ao argumento inicial. Nós temos pressa — necessidade intensa de alcançar um objetivo. Não nos contentamos com o “enquanto”. A travessia não nos interessa, queremos chegar “lá”. No entanto, Deus não é assim. Ou você faria um contrato de longo prazo com alguém de 99 anos de idade? Mas, ao conversar com Abraão, como se fosse necessário, Deus relembra também quem ele [Deus] é. Depois, como se falasse a um bando de adolescentes com hormônios à flor da pele, reclama obediência e integridade. E, por último, com fina ironia, fala dos seus planos, claro, para o futuro...

Deus não tem pressa. Melhor, Deus tem tempo. E, graças a ele, mesmo sem saber exatamente que horas são, nós cabemos nos seus planos. Nesses dias corridos e em meio aos imprevistos, não há melhor consolo do que escutar: “Ainda dá tempo”... (Sl 90). Nas palavras de C. S. Lewis, "a Deus pertence o nosso futuro, não importa se o deixamos em suas mãos ou não".

Marcos Bontempo, de ultimato.com.br

sábado, 29 de janeiro de 2011

Por que eu deveria derramar lágrimas?


Não sou uma pessoa que chora com naturalidade e, em geral, consideram-me forte. Fui educado na Rugby School, uma daquelas famosas escolas “públicas” em que se aprende a filosofia da casca grossa, isto é, não se deve demonstrar qualquer emoção.

Porém, li os evangelhos e descobri neles o registro de que Jesus, nosso Senhor, chorou em público duas vezes: uma por causa da falta de arrependimento da cidade de Jerusalém (Lc 19.41) e outra por causa do sepultamento de Lázaro (Jo 11.35).

Deste modo, se Jesus chorou, seus discípulos presumivelmente poderiam fazê-lo.
Mas por que eu deveria derramar lágrimas? Não estava diante da falta de arrependimento nem da morte. Estaria eu afundado na autocomiseração, sob a perspectiva de uma lenta recuperação? Estaria lamentando minha queda e fratura? Estaria vislumbrando ali o fim do meu ministério? Não, na verdade eu não tive tempo de colocar meus pensamentos em ordem.

Tive uma experiência semelhante de lamento com meu amigo John Wyatt, que é professor de ética e perinatologia no hospital-escola da Universidade de Londres, e que se tornou famoso por defender a inviolabilidade da vida humana em debates públicos sobre aborto e eutanásia.
Quando ele me visitou no hospital, compartilhamos nossas experiências de fragilidade e dependência e ambos chegamos às lágrimas. Eis a forma como ele descreveu essa situação:

“Nos primeiros dias depois da cirurgia, John Stott foi acometido por episódios de desorientação e por distintas e alarmantes alucinações visuais. Além disso, havia a inevitável humilhação de receber os cuidados da enfermagem, e a preocupação com o futuro. Enquanto estávamos no hospital, conversando e compartilhando, lembrei-me da minha própria experiência de doença e caos, alguns anos antes. Lembro-me que estávamos em lágrimas, dominados por um poderoso sentimento comum de vulnerabilidade e debilidade humana. Foi uma experiência dolorosa, mas libertadora”.

A seguir a segunda e semelhante experiência, dessa vez com a contribuição de Sheila Moore, minha fisioterapeuta e amiga:

“Foi logo após o retorno para casa, depois de sua convalescença. Stott havia acabado de voltar para descansar em uma cadeira, quando, de repente, estremeceu e suspirou profundamente. Fui ver se ele se sentia mal e percebi que as lágrimas fluíam livremente. Ele estava vivenciando uma arrebatadora liberação de toda a carga emocional e dos desafios dos eventos recentes, que ele havia pacientemente suportado sendo “um paciente”. Não há palavras a serem ditas durante uma experiência tão profunda — somente uma empatia e uma confortante mão firme em seu ombro. Pouco a pouco, enquanto a emoção cedia, assegurei a ele que não se tratava de uma experiência incomum em tais circunstâncias, e que as lágrimas são um alívio e uma forma de cura muito valiosa”.

Essa experiência completamente “inusitada” aconteceu repentinamente; foi uma surpresa que causou certo choque e dor emocional. Racionalizar tais experiências talvez seja difícil, especialmente para homens, que tendem a vê-las como uma humilhação. Porém, se encaradas com honestidade, podem ser um alívio maravilhoso. É muito valioso encarar aqueles momentos como uma preparação dada por Deus para as mudanças que se encontrariam à frente, e como um presente especial da parte dele.

[Texto retirado, com permissão, de O discípulo Radical, de John Stott, lançamento da Editora Ultimato, em março de 2011.]

• John Stott conhecido no mundo inteiro como teólogo, escritor e evangelista, é autor de mais de quarenta livros, incluindo A Missão Cristã no Mundo Moderno, A Bíblia Toda, o Ano Todo, Por Que Sou Cristão e o campeão de vendas Cristianismo Básico. Ele é pastor emérito da All Souls Church, em Londres, e fundador do London Institute for Contemporary Christianity. Foi indicado pela revista Time como uma das cem personalidades mais influentes do mundo.

De: www.ultimato.com.br

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

O perigo da alegria constante


Ligue a televisão em um desses canais com pregação ao vivo e espere cinco minutos. Talvez nem demore tanto para notar o discurso positivista que tem tomado conta da igreja cristã no Brasil. A venda da felicidade, da alegria constante, tem tirado o foco do sofrimento que Jesus tanto pregou em seus três anos de carreira aqui na Terra.

Lembro bem da passagem na qual Cristo percebe a multidão que o seguia apenas pelo interesse do milagre fácil, da cura instantânea, desatenta a real mudança de comportamento que o Mestre pregava, e inicia um discurso duro. Um a um, Jesus vai ganhando unfollows perdendo seguidores, até restarem apenas os 12 discípulos.

Como a música cristã no Brasil é muito vinculada à doutrina das igrejas, não demorou muito para que versos como "quem te viu passar na prova e não te ajudou / quando ver você na bênção vai se arrepender" surgissem. A mensagem quase-vingativa tomou o lugar das reflexões descompromissadas, que expressavam apenas a dor da alma que sofria em terra estranha.

Em tempos de relacionamentos superficiais dentro da própria igreja, o discurso da "alegria sempre" nunca se fez tão necessário. Pregar o sofrimento, a renúncia, se tornaram sinônimo de não-aceitação de mercado. A indústria cristã se tornou um negócio como qualquer outro. Se o artista não vende, fica sem gravadora. Simples assim.

Se artistas como Sérgio Lopes e Álvaro Tito, que cantaram a melancolia com afinco, lançassem seus primeiros discos nos dias de hoje, será que os conheceríamos? Consegue dimensionar o tamanho da perda a qual estamos sujeitos escolhendo apenas o que é feliz? Será que Antônio Almeida conseguiria emplacar Rude Cruz nas rádios gospel de sua cidade?

"Sim, eu amo a mensagem da cruz
Té morrer eu a vou proclamar
Levarei eu também minha cruz
Té por uma coroa trocar"

Nem só de alegrias é feita a vida. Assim também é a vida cristã.

De: http://blog.rafaelporto.com/

domingo, 23 de janeiro de 2011

Keith Green


O nome de Keith Green não é um dos mais conhecidos no Brasil. Boa parte dos crentes dá crédito ao Michael W. Smith, sem saber que o estilo piano-adoração foi inaugurado por outro jovem, quase trinta anos antes da série worship lançada pelo bonitão da música gospel. A história do artista surpreende não apenas pela qualidade musical, mas também pela própria vida.

Cresci cantarolando os versos Senhor bondoso és / tua face eu quero ver, de uma faixa que coloquei no repeat de meu mini system diversas vezes enquanto ouvia o disco de Marcos Góes (alguém ainda lembra dos longínquos e bons tempos da MK Publicitá?). Só muitos anos depois, quando tive acesso à internet, conheci o autor da canção original: Keith Green.


Morto há 28 anos, quando ainda tinha apenas 28 anos, e por incrível que pareça, em um dia 28, Keith deixou uma marca na música cristã contemporânea. Testemunha da grande mudança ocorrida no mundo durante as décadas de 60 e 70, Green foi além do gospel tradicional e compôs músicas profundamente atuais para a época - algumas me lembram muito o estilo do Elton John.


Fora dos palcos, provou a diferença que existe entre um autêntico cristão e um artista interessado em promoção pessoal: evangelizou prostitutas, drogados e cedeu os próprios bens em favor dos outros. Praticamente um Barnabé moderno, que pregava por meio da música e vivia o que compunha. Um exemplo.


Não bastasse a vida comovente, nos deu de presente Your Love Broke Throug, uma das músicas mais lindas que já ouvi na vida.

De: http://blog.rafaelporto.com/

Arte sem rótulo cristão


Luzes no palco, rock em alto volume e uma multidão de braços erguidos, em balanço sincronizado e sorriso aberto. No microfone ao centro, um jovem barbudo de cabelos cacheados empunha uma guitarra, cambaleia pelas melodias como um equilibrista bêbado, enquanto outros três amigos guiam com segurança o ritmo que faz bater o pé dos ouvintes mais contidos.

As camisetas estampam mensagens de atitude, denunciam a fé e o vigor juvenil dos integrantes do Palavrantiga. "Feito de barro", exibe discretamente no peito o vocalista Marcos Almeida, enquanto espalha sua feliz mensagem de esperança em melodias melancólicas. É noite de sexta-feira e, ao meu lado, centenas de homens e mulheres acompanham cada verso a plenos pulmões.

A cena toda ocorre dentro da igreja Missão Praia da Costa, em Vila Velha (ES). Ao fim do espetáculo - que em nenhum momento deixa de parecer um culto - me identifico, conheço de perto os integrantes da banda, sou lembrado pela sincera crítica feita ao disco - da qual pude me explicar mais tarde -, e combinamos um almoço para o dia seguinte. Cantarolando as músicas novas que embalaram a noite, volto para casa e espero o horário marcado.



Arte cristã?

Mineiros e capixabas estão reunidos em uma longa mesa e, entre um pedaço e outro de picanha, começo a entender um pouco mais da cosmovisão - termo frequente no vocabulário de Marcos - que rege as letras da banda. Depois de algumas horas compartilhando experiências, sou informado que o Palavra - nome carinhoso com o qual se referem ao grupo - foi convidado para abrir um dos shows do E.M.I.C.I.D.A em São Paulo.

O rapper brasileiro, emergente na cena do hip hop, recentemente foi pauta de grandes revistas nacionais (veja ótima entrevista concedida a Pedro Alexandre Sanchez para a Bravo! aqui). "Dizem que os caras da Rolling Stone vão estar lá. Já pensou, cara?", sonha o vocalista. Na rápida conversa que sucede a novidade, fica evidente o feito alcançado pela banda: mais uma vez, romperam o circuito cristão e alcançaram notoriedade além do rótulo que os persegue.

Por sinal, rótulo este rejeitado com veemência. "Quem acompanha o Palavrantiga não está desenganado a respeito da gente. Primeiro que a gente não é uma banda com fins religiosos. Todo mundo sabe disso. Alguns chamam a gente de gospel, outros de cristãos, mas a gente nunca denominou o Palavrantiga com estes termos. Isto é coisa que outros estão dizendo a respeito da gente. A gente enxerga o mundo de forma muito mais simples, embora outros possam enxergar de forma complicada", justifica Marcos.

"Tem muita gente ganhando mídia, palanque e espaço na internet, nas novas mídias, batendo no meio evangélico mas sem propor ou criar um novo pensamento. Não se propõe nada, o máximo que tentam é chamarem a si mesmos de criativos, inteligentes. Aí eu pergunto: 'mas o que você propôs, brother? Você ainda faz divisão do mundo em sacro e profano, só é um pouquinho mais sofisticado, usando um vocabulário diferente'" (Marcos)

Este "enxergar de forma complicada", citado pelo vocalista, se estende à igreja, aos meios de comunicação e, por que não?, aos artistas cristãos. "O que valida, fundamenta, justifica o fato de fazer música? Se for outra coisa a não ser arte, você a está subjugando a outra esfera, que talvez pode diminuí-la. O que algumas pessoas fazem é se esconder dentro de um argumento eclesiológico, um argumento da esfera epísitica pística, [para entender mais sobre o conceito, leia aqui, por indicação de Marcos] religiosa, pra validar seu trabalho de artista, sendo que são esferas interdependentes", explica.

Unção x Qualidade

Almoço terminado, seguimos para mais uma rodada de perguntas, desta vez, na casa do baterista Lucas Fonseca. Acomodados na sala, conversamos mais um pouco sobre os rumos da música cristã. Ponho em xeque a postura de alguns artistas, que insistem em comercializar músicas rasas sob o pretexto de serem "cheios de unção" - parâmetro imprescindível, tendo em vista que todo cristão possui o Espírito Santo como guia. Marcos responde.

"Não é porque você tem fé que a sua canção é válida. Pode fazer uma canção que é uma porcaria, horrível. Existe o belo e o feio. E tem gente que pode fazer uma canção feia e ter unção. Entendeu? Mas aí é o seguinte: o que você vai estar avaliando quando o brother está compartilhando a música dele? No contexto religioso, da igreja, o importante ainda é a mensagem, a unção, porque a igreja ainda não criou um espaço para apreciar", resume.

* Você sabia?
* Os integrantes se conheceram enquanto faziam turnê como banda de apoio de Heloísa Rosa, conhecida por ministrar com David Quinlan
* Marcos, que era tecladista de Heloísa, se juntou a Lucas, Felipe e Josias apenas em 2008 como Palavrantiga
* Neste curte período, o Palavrantiga foi convidado pelo tecladista do Skank, Henrique Portugal, para tocar em eventos de bandas alternativas
* O grupo é um dos destaques do Oi Novo Som!, projeto da Oi FM para divulgar novas bandas brasileiras

Fora da igreja, porém, se faz necessário abrir espaço para a apreciação, concordam os integrantes da banda. Lucas defende o fim da "poda artística" dentro das igrejas, ambientes onde a expressão deve sempre estar vinculada à devoção. O baterista hierarquiza três pontos que considera fundamentais para a boa arte, citando um crítico holandês [não consegui encontrar mais referências na internet], Rookmaker. "Primeiro, a qualidade dela [da arte], a técnica; segundo, se ela tinha uma verdade, se não era uma coisa reducionista, distorcida; e terceiro, a integralidade da arte. São três pontos que o cara sempre falava: 'nem toda a arte cristã tem isso, e muita coisa do meio tradicional artístico se encaixa nestes pontos'", lembra. [A banda sugeriu o áudio de uma palestra de Rodolfo Amorim, na qual disserta sobre o crítico holandês. Ouça aqui]

Igreja

Para Marcos Almeida, a discussão envolvendo rótulos, qualidade e unção tem sido feita no ambiente errado. A igreja, segundo classifica, continua sendo o lugar para apenas "acolher pessoas e ensinar o evangelho". Torná-la um ambiente para debates, diluindo sua função principal, "é dar à esfera pística, uma coisa que não é da alçada dela", lamenta.

Em meio à profundidade dos temas discutidos, é inevitável não perceber quão bem embasados estão todos os membros do Palavrantiga. Parte disso, deve-se à biblioteca transportada durante as viagens da mini-turnê. Ao invés de discos e música em alto volume - como vemos nos filmes -, livros e silêncio estão por toda a parte. Obras de CS Lewis, John Stott, e outros que não consegui discernir (por culpa do inglês com sotaque mineiro do vocalista) deixam para trás o esteriótipo de que bandas de rock e literatura não combinam.


Dentre as influências brasileiras, estão os autores Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim, referidos como amigos. Crítico confesso do modo de confissão artística praticado no país, Marcos vai de encontro à postura dos cristãos. "[O crente] Precisa ler coisas diferentes. Poderiam existir associações artísticas que não necessariamente precisariam de um aval ou investimento do pastor. O que impede artistas cristãos de se reunirem, ter a ideia de construir um café, uma livraria?", sugere o vocalista.

"Mas se você tirar o consumo de dentro da liturgia do culto, eliminar este conceito de que, ao comprar um disco, abençoa o ministério de fulano, a estratégia funcionaria?", questiono. "Não", rebate instantaneamente Marcos. "Teria que mudar a visão de mundo e isso é um processo cultural. Talvez, o que estamos debatendo aqui só nossos filhos vão ter a tranquilidade de realizar", lamenta o artista, pela primeira vez, refém das mentes que não pôde mudar com seus questionamentos em forma de música.

De: http://blog.rafaelporto.com/