sábado, 29 de janeiro de 2011

Por que eu deveria derramar lágrimas?


Não sou uma pessoa que chora com naturalidade e, em geral, consideram-me forte. Fui educado na Rugby School, uma daquelas famosas escolas “públicas” em que se aprende a filosofia da casca grossa, isto é, não se deve demonstrar qualquer emoção.

Porém, li os evangelhos e descobri neles o registro de que Jesus, nosso Senhor, chorou em público duas vezes: uma por causa da falta de arrependimento da cidade de Jerusalém (Lc 19.41) e outra por causa do sepultamento de Lázaro (Jo 11.35).

Deste modo, se Jesus chorou, seus discípulos presumivelmente poderiam fazê-lo.
Mas por que eu deveria derramar lágrimas? Não estava diante da falta de arrependimento nem da morte. Estaria eu afundado na autocomiseração, sob a perspectiva de uma lenta recuperação? Estaria lamentando minha queda e fratura? Estaria vislumbrando ali o fim do meu ministério? Não, na verdade eu não tive tempo de colocar meus pensamentos em ordem.

Tive uma experiência semelhante de lamento com meu amigo John Wyatt, que é professor de ética e perinatologia no hospital-escola da Universidade de Londres, e que se tornou famoso por defender a inviolabilidade da vida humana em debates públicos sobre aborto e eutanásia.
Quando ele me visitou no hospital, compartilhamos nossas experiências de fragilidade e dependência e ambos chegamos às lágrimas. Eis a forma como ele descreveu essa situação:

“Nos primeiros dias depois da cirurgia, John Stott foi acometido por episódios de desorientação e por distintas e alarmantes alucinações visuais. Além disso, havia a inevitável humilhação de receber os cuidados da enfermagem, e a preocupação com o futuro. Enquanto estávamos no hospital, conversando e compartilhando, lembrei-me da minha própria experiência de doença e caos, alguns anos antes. Lembro-me que estávamos em lágrimas, dominados por um poderoso sentimento comum de vulnerabilidade e debilidade humana. Foi uma experiência dolorosa, mas libertadora”.

A seguir a segunda e semelhante experiência, dessa vez com a contribuição de Sheila Moore, minha fisioterapeuta e amiga:

“Foi logo após o retorno para casa, depois de sua convalescença. Stott havia acabado de voltar para descansar em uma cadeira, quando, de repente, estremeceu e suspirou profundamente. Fui ver se ele se sentia mal e percebi que as lágrimas fluíam livremente. Ele estava vivenciando uma arrebatadora liberação de toda a carga emocional e dos desafios dos eventos recentes, que ele havia pacientemente suportado sendo “um paciente”. Não há palavras a serem ditas durante uma experiência tão profunda — somente uma empatia e uma confortante mão firme em seu ombro. Pouco a pouco, enquanto a emoção cedia, assegurei a ele que não se tratava de uma experiência incomum em tais circunstâncias, e que as lágrimas são um alívio e uma forma de cura muito valiosa”.

Essa experiência completamente “inusitada” aconteceu repentinamente; foi uma surpresa que causou certo choque e dor emocional. Racionalizar tais experiências talvez seja difícil, especialmente para homens, que tendem a vê-las como uma humilhação. Porém, se encaradas com honestidade, podem ser um alívio maravilhoso. É muito valioso encarar aqueles momentos como uma preparação dada por Deus para as mudanças que se encontrariam à frente, e como um presente especial da parte dele.

[Texto retirado, com permissão, de O discípulo Radical, de John Stott, lançamento da Editora Ultimato, em março de 2011.]

• John Stott conhecido no mundo inteiro como teólogo, escritor e evangelista, é autor de mais de quarenta livros, incluindo A Missão Cristã no Mundo Moderno, A Bíblia Toda, o Ano Todo, Por Que Sou Cristão e o campeão de vendas Cristianismo Básico. Ele é pastor emérito da All Souls Church, em Londres, e fundador do London Institute for Contemporary Christianity. Foi indicado pela revista Time como uma das cem personalidades mais influentes do mundo.

De: www.ultimato.com.br

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

O perigo da alegria constante


Ligue a televisão em um desses canais com pregação ao vivo e espere cinco minutos. Talvez nem demore tanto para notar o discurso positivista que tem tomado conta da igreja cristã no Brasil. A venda da felicidade, da alegria constante, tem tirado o foco do sofrimento que Jesus tanto pregou em seus três anos de carreira aqui na Terra.

Lembro bem da passagem na qual Cristo percebe a multidão que o seguia apenas pelo interesse do milagre fácil, da cura instantânea, desatenta a real mudança de comportamento que o Mestre pregava, e inicia um discurso duro. Um a um, Jesus vai ganhando unfollows perdendo seguidores, até restarem apenas os 12 discípulos.

Como a música cristã no Brasil é muito vinculada à doutrina das igrejas, não demorou muito para que versos como "quem te viu passar na prova e não te ajudou / quando ver você na bênção vai se arrepender" surgissem. A mensagem quase-vingativa tomou o lugar das reflexões descompromissadas, que expressavam apenas a dor da alma que sofria em terra estranha.

Em tempos de relacionamentos superficiais dentro da própria igreja, o discurso da "alegria sempre" nunca se fez tão necessário. Pregar o sofrimento, a renúncia, se tornaram sinônimo de não-aceitação de mercado. A indústria cristã se tornou um negócio como qualquer outro. Se o artista não vende, fica sem gravadora. Simples assim.

Se artistas como Sérgio Lopes e Álvaro Tito, que cantaram a melancolia com afinco, lançassem seus primeiros discos nos dias de hoje, será que os conheceríamos? Consegue dimensionar o tamanho da perda a qual estamos sujeitos escolhendo apenas o que é feliz? Será que Antônio Almeida conseguiria emplacar Rude Cruz nas rádios gospel de sua cidade?

"Sim, eu amo a mensagem da cruz
Té morrer eu a vou proclamar
Levarei eu também minha cruz
Té por uma coroa trocar"

Nem só de alegrias é feita a vida. Assim também é a vida cristã.

De: http://blog.rafaelporto.com/

domingo, 23 de janeiro de 2011

Keith Green


O nome de Keith Green não é um dos mais conhecidos no Brasil. Boa parte dos crentes dá crédito ao Michael W. Smith, sem saber que o estilo piano-adoração foi inaugurado por outro jovem, quase trinta anos antes da série worship lançada pelo bonitão da música gospel. A história do artista surpreende não apenas pela qualidade musical, mas também pela própria vida.

Cresci cantarolando os versos Senhor bondoso és / tua face eu quero ver, de uma faixa que coloquei no repeat de meu mini system diversas vezes enquanto ouvia o disco de Marcos Góes (alguém ainda lembra dos longínquos e bons tempos da MK Publicitá?). Só muitos anos depois, quando tive acesso à internet, conheci o autor da canção original: Keith Green.


Morto há 28 anos, quando ainda tinha apenas 28 anos, e por incrível que pareça, em um dia 28, Keith deixou uma marca na música cristã contemporânea. Testemunha da grande mudança ocorrida no mundo durante as décadas de 60 e 70, Green foi além do gospel tradicional e compôs músicas profundamente atuais para a época - algumas me lembram muito o estilo do Elton John.


Fora dos palcos, provou a diferença que existe entre um autêntico cristão e um artista interessado em promoção pessoal: evangelizou prostitutas, drogados e cedeu os próprios bens em favor dos outros. Praticamente um Barnabé moderno, que pregava por meio da música e vivia o que compunha. Um exemplo.


Não bastasse a vida comovente, nos deu de presente Your Love Broke Throug, uma das músicas mais lindas que já ouvi na vida.

De: http://blog.rafaelporto.com/

Arte sem rótulo cristão


Luzes no palco, rock em alto volume e uma multidão de braços erguidos, em balanço sincronizado e sorriso aberto. No microfone ao centro, um jovem barbudo de cabelos cacheados empunha uma guitarra, cambaleia pelas melodias como um equilibrista bêbado, enquanto outros três amigos guiam com segurança o ritmo que faz bater o pé dos ouvintes mais contidos.

As camisetas estampam mensagens de atitude, denunciam a fé e o vigor juvenil dos integrantes do Palavrantiga. "Feito de barro", exibe discretamente no peito o vocalista Marcos Almeida, enquanto espalha sua feliz mensagem de esperança em melodias melancólicas. É noite de sexta-feira e, ao meu lado, centenas de homens e mulheres acompanham cada verso a plenos pulmões.

A cena toda ocorre dentro da igreja Missão Praia da Costa, em Vila Velha (ES). Ao fim do espetáculo - que em nenhum momento deixa de parecer um culto - me identifico, conheço de perto os integrantes da banda, sou lembrado pela sincera crítica feita ao disco - da qual pude me explicar mais tarde -, e combinamos um almoço para o dia seguinte. Cantarolando as músicas novas que embalaram a noite, volto para casa e espero o horário marcado.



Arte cristã?

Mineiros e capixabas estão reunidos em uma longa mesa e, entre um pedaço e outro de picanha, começo a entender um pouco mais da cosmovisão - termo frequente no vocabulário de Marcos - que rege as letras da banda. Depois de algumas horas compartilhando experiências, sou informado que o Palavra - nome carinhoso com o qual se referem ao grupo - foi convidado para abrir um dos shows do E.M.I.C.I.D.A em São Paulo.

O rapper brasileiro, emergente na cena do hip hop, recentemente foi pauta de grandes revistas nacionais (veja ótima entrevista concedida a Pedro Alexandre Sanchez para a Bravo! aqui). "Dizem que os caras da Rolling Stone vão estar lá. Já pensou, cara?", sonha o vocalista. Na rápida conversa que sucede a novidade, fica evidente o feito alcançado pela banda: mais uma vez, romperam o circuito cristão e alcançaram notoriedade além do rótulo que os persegue.

Por sinal, rótulo este rejeitado com veemência. "Quem acompanha o Palavrantiga não está desenganado a respeito da gente. Primeiro que a gente não é uma banda com fins religiosos. Todo mundo sabe disso. Alguns chamam a gente de gospel, outros de cristãos, mas a gente nunca denominou o Palavrantiga com estes termos. Isto é coisa que outros estão dizendo a respeito da gente. A gente enxerga o mundo de forma muito mais simples, embora outros possam enxergar de forma complicada", justifica Marcos.

"Tem muita gente ganhando mídia, palanque e espaço na internet, nas novas mídias, batendo no meio evangélico mas sem propor ou criar um novo pensamento. Não se propõe nada, o máximo que tentam é chamarem a si mesmos de criativos, inteligentes. Aí eu pergunto: 'mas o que você propôs, brother? Você ainda faz divisão do mundo em sacro e profano, só é um pouquinho mais sofisticado, usando um vocabulário diferente'" (Marcos)

Este "enxergar de forma complicada", citado pelo vocalista, se estende à igreja, aos meios de comunicação e, por que não?, aos artistas cristãos. "O que valida, fundamenta, justifica o fato de fazer música? Se for outra coisa a não ser arte, você a está subjugando a outra esfera, que talvez pode diminuí-la. O que algumas pessoas fazem é se esconder dentro de um argumento eclesiológico, um argumento da esfera epísitica pística, [para entender mais sobre o conceito, leia aqui, por indicação de Marcos] religiosa, pra validar seu trabalho de artista, sendo que são esferas interdependentes", explica.

Unção x Qualidade

Almoço terminado, seguimos para mais uma rodada de perguntas, desta vez, na casa do baterista Lucas Fonseca. Acomodados na sala, conversamos mais um pouco sobre os rumos da música cristã. Ponho em xeque a postura de alguns artistas, que insistem em comercializar músicas rasas sob o pretexto de serem "cheios de unção" - parâmetro imprescindível, tendo em vista que todo cristão possui o Espírito Santo como guia. Marcos responde.

"Não é porque você tem fé que a sua canção é válida. Pode fazer uma canção que é uma porcaria, horrível. Existe o belo e o feio. E tem gente que pode fazer uma canção feia e ter unção. Entendeu? Mas aí é o seguinte: o que você vai estar avaliando quando o brother está compartilhando a música dele? No contexto religioso, da igreja, o importante ainda é a mensagem, a unção, porque a igreja ainda não criou um espaço para apreciar", resume.

* Você sabia?
* Os integrantes se conheceram enquanto faziam turnê como banda de apoio de Heloísa Rosa, conhecida por ministrar com David Quinlan
* Marcos, que era tecladista de Heloísa, se juntou a Lucas, Felipe e Josias apenas em 2008 como Palavrantiga
* Neste curte período, o Palavrantiga foi convidado pelo tecladista do Skank, Henrique Portugal, para tocar em eventos de bandas alternativas
* O grupo é um dos destaques do Oi Novo Som!, projeto da Oi FM para divulgar novas bandas brasileiras

Fora da igreja, porém, se faz necessário abrir espaço para a apreciação, concordam os integrantes da banda. Lucas defende o fim da "poda artística" dentro das igrejas, ambientes onde a expressão deve sempre estar vinculada à devoção. O baterista hierarquiza três pontos que considera fundamentais para a boa arte, citando um crítico holandês [não consegui encontrar mais referências na internet], Rookmaker. "Primeiro, a qualidade dela [da arte], a técnica; segundo, se ela tinha uma verdade, se não era uma coisa reducionista, distorcida; e terceiro, a integralidade da arte. São três pontos que o cara sempre falava: 'nem toda a arte cristã tem isso, e muita coisa do meio tradicional artístico se encaixa nestes pontos'", lembra. [A banda sugeriu o áudio de uma palestra de Rodolfo Amorim, na qual disserta sobre o crítico holandês. Ouça aqui]

Igreja

Para Marcos Almeida, a discussão envolvendo rótulos, qualidade e unção tem sido feita no ambiente errado. A igreja, segundo classifica, continua sendo o lugar para apenas "acolher pessoas e ensinar o evangelho". Torná-la um ambiente para debates, diluindo sua função principal, "é dar à esfera pística, uma coisa que não é da alçada dela", lamenta.

Em meio à profundidade dos temas discutidos, é inevitável não perceber quão bem embasados estão todos os membros do Palavrantiga. Parte disso, deve-se à biblioteca transportada durante as viagens da mini-turnê. Ao invés de discos e música em alto volume - como vemos nos filmes -, livros e silêncio estão por toda a parte. Obras de CS Lewis, John Stott, e outros que não consegui discernir (por culpa do inglês com sotaque mineiro do vocalista) deixam para trás o esteriótipo de que bandas de rock e literatura não combinam.


Dentre as influências brasileiras, estão os autores Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim, referidos como amigos. Crítico confesso do modo de confissão artística praticado no país, Marcos vai de encontro à postura dos cristãos. "[O crente] Precisa ler coisas diferentes. Poderiam existir associações artísticas que não necessariamente precisariam de um aval ou investimento do pastor. O que impede artistas cristãos de se reunirem, ter a ideia de construir um café, uma livraria?", sugere o vocalista.

"Mas se você tirar o consumo de dentro da liturgia do culto, eliminar este conceito de que, ao comprar um disco, abençoa o ministério de fulano, a estratégia funcionaria?", questiono. "Não", rebate instantaneamente Marcos. "Teria que mudar a visão de mundo e isso é um processo cultural. Talvez, o que estamos debatendo aqui só nossos filhos vão ter a tranquilidade de realizar", lamenta o artista, pela primeira vez, refém das mentes que não pôde mudar com seus questionamentos em forma de música.

De: http://blog.rafaelporto.com/